Carla Milani Damião
Priscila Rossinetti Rufinoni
Rita Márcia Magalhães Furtado
Tiago Quiroga
Apresentação
Esta publicação propicia uma síntese temática dos trabalhos apresentados no “IV Colóquio Estéticas no Centro” com ênfase nas viagens, abrindo-se para todas as analogias possíveis delas advindas. É uma divulgação, para além do público participante do seminário, dos trabalhos e das discussões que envolvem a problematização metodológica das viagens. Marca igualmente a constituição de categorias de análise de uma temática que ganha crescente relevância na produção e na circulação do conhecimento. Nessa abrangência temática, partimos da importância do nomadismo na formação das culturas humanas para chegarmos à ideia de Bildung (formação moral, intelectual, artística e cultural); das narrativas de viagens surgidas na tradição oral e na escrita do Ocidente, do modelo da Odisseia, de Homero, ao gênero dos filmes de estrada (road movies), Westerns e de ficção científica, além de incluir os incontáveis relatos de viagem, diários de bordo e escritos que fornecem suporte à aprendizagem de vida como modelo de um tipo de autoconhecimento que inclui necessariamente a alteridade.
As viagens estão ligadas à busca do conhecimento de si, à ânsia de alguém por deslocar-se de seu lugar de origem e vagar por outros espaços. A partir da experiência da distância e do estranhamento, cria-se um autêntico espaço de indagações cosmológicas e filosóficas, de busca e de nostalgia, mas, sobretudo, de descobertas que se dão no âmbito pessoal, coletivo, científico e/ou territorial. Assim, concomitantemente, é tema de investigações científicas e artísticas ou elas mesmas são produtos que geram conhecimentos, relações sociais e econômicas. As viagens constituem-se como tema de obras de arte e de relatos pessoais ou públicos, de registros ou diários de bordo, fazendo parte de experiências que se vinculam fortemente à memória. As viagens, como jornadas exploratórias que se instituem a partir do movimento nos âmbitos exterior e interior, são representativas de um “pensamento do mundo”; criam condições para um modo de existência outro, assentando sua base na errância como forma de sustentação de uma racionalidade; suas descrições provocam o imaginário no entrecruzamento de experiências, percepções e narrativas com a ciência, a história, a antropologia, a filosofia, a política e as artes.
As viagens pertencem igualmente a reuniões e rituais de rememoração oral das grandes aventuras de um povo, de maneira a transmitir seu conhecimento às novas gerações. Os aspectos narrativo e ficcional, com suas projeções imagéticas e explorações territoriais, fazem emergir um tipo de conhecimento que se caracteriza pela investigação e pela observação do espaço desconhecido. Desse universo, saltaria também uma nova personagem, um novo eu, um novo nós… Esse tipo de experiência é muito presente nas narrativas ficcionais, mas sobretudo autobiográficas. Tais relatos implicam uma vasta relação com o universo e permitem-nos admitir também uma dimensão das viagens independentemente do movimento, considerando as viagens interiores ou mais subjetivas, que nasceram, sobretudo, de tradições místicas.
Deparamo-nos ainda com os relatos, escritos e ilustrações dos investimentos colonialistas maquiados como “descoberta”, mas que se constituíram como exploração, invasão e incorporação de territórios. Nesse sentido, as grandes viagens de navegação podem ser lidas sob a chave dos estudos decolonais ou pós-coloniais, ou seja, não mais como marcos do desbravamento corajoso, mas, sim, como evidências e testemunhos incontornáveis de crimes humanitários. Ailton Krenak, em visita a um museu em São Petersburgo, reencontrou peças e registros de sua cultura feitos por uma expedição etnográfica russa ao Brasil, quando seu povo existia em maior número e em terras mais livres. De lá, ele trouxe o registro de um vocabulário perdido, que havia sido apagado da memória do povo Krenak, uma prova irrefutável da destruição causada pelo agente autopropagador da civilização. Como as de Krenak, outras narrativas põem em cena as migracões forçadas pela escravidão, pelo fluxo do capital, pelas guerras.
Em outra vertente, mas certamente ainda dentro do projeto colonialista, pode-se contrapor o movimento de (não) abertura de fronteiras no compasso do processo de globalização. Nesse caso, reforça-se a necessidade de realização de um comércio, livre do cerceamento do Estado, em aliança com a tecnologia, instituindo as viagens virtuais maquiadas como menos emissora de CO2; veem-se ainda o atual fechamento e a criação de barreiras nacionais, com a construção de muros e a retenção de massas migratórias em campos de refugiados. Emergem daí novas narrativas ligadas a antigas experiências de dor e deslocamento provocados por um sentimento de desamparo desses grupos humanos em busca de uma vida melhor.
Quando vividas diretamente, as viagens alcançam verdades que expõem relações sociais e, na representação da aventura, da fuga, do desbravamento, da mudança, da perseguição, da exploração, da migração ou da transposição de fronteiras, indicam sua presença no solo comum desse planeta, para os que apenas o aceitam tal como é ou para os que se propõem a reinventá-lo. Direito, (in)justiça, riscos… Propagação de vida e anúncio de morte. A viagem é a salvação econômica de uns, a exploração e o desespero de outros. No período inicial da pandemia de coronavírus (fim de 2019), por exemplo, as viagens assumiram uma nova configuração que esbarrou e ao mesmo tempo superou o adiamento, a ausência, o vazio e a virtualidade, perpassando pelo deslocamento, ainda que cerceado pelo cuidado profilático e pelas normatizações sanitárias mais rígidas.
No campo do turismo de massa, sobretudo antes da pandemia, a comercialização de viagens surgia como uma contradição para a própria essência da definição de viagem. Isso porque tais viagens incitam que os deslocamentos físicos de pessoas aconteçam sem que estas se mudem efetivamente de lugar, tamanha a padronização nos locais que recebem esse contingente em constante deslocamento, mas ávido pelo igual, pelos mesmos serviços e pelos mesmos cenários.
Vistas enquanto viagens, as migrações e expatriações são temas de uma vasta produção crítica do ativismo político nas artes, que exploram experiências nas quais as (i)migrações se consolidam como um problema fundamental para uma adesão solidária do máximo número de pessoas no combate de tantas formas de sofrimento. No mundo tecnológico, essas questões éticas das viagens surgem de modo igualmente polêmico quando se tematizam as viagens não tripuladas feitas por drones, aeronaves teleguiadas ou operadas por algoritmos. Tais viagens geram uma quantidade gigantesca de imagens e dados que se tornaram humanamente impossíveis de serem experimentados em sua singularidade, mas cujo banco de dados se torna fonte de evidências para processos criminais e base contra a corrente emergente das “verdades alternativas” (ou da “pós-verdade”).
As viagens ainda se projetam como experiência ou como ficção, contadas com imagens, falas, olhares, relatos escritos, cheiros e texturas, tornando-se filmes, performances, literatura, instalações, arquitetura, escultura, poemas, músicas e tantas outras formas de arte. As viagens expõem e reconcebem o mundo que habitamos e, em não poucas vezes, mostram este para nós de forma inovadora sob a clivagem caleidoscópica da criação, por uma perspectiva estética, de caráter multidisciplinar e formador. Há, porém, um foco preciso e básico ao longo dos textos que compõem este livro: lidar com o imaginário e a representação das viagens, mesmo que a existência destas seja objetiva e documentada. Um enlace entre o subjetivo e o objetivo, entre o individual e o coletivo, reunido à memória, ao tempo e ao espaço. As vicissitudes da temática justificam as provocações trazidas pelos subtemas que enunciaram as sessões de trabalho, que entendemos como novas provocações para o pensamento.
Assim, compartilhar as ideias debatidas no “IV Colóquio Internacional Estéticas no Centro: Estéticas das Viagens” nesta obra objetiva explorar os sentimentos e experiências vinculadas a esses grandes deslocamentos e seus impactos para o conhecimento, para a formação cultural e para a compreensão de quantas humanidades somos na medida em que, historicamente, foram as grandes viagens por terra ou água que aproximaram povos tão distintos e distantes e que, hoje, pelos ares ou virtualmente, aceleram ainda mais o mesmo processo. Partindo dessa importância fundamental, esta publicação reúne esforços interdisciplinares para investigar as experiências multissensoriais que as viagens proporcionam ou que lhe são atribuídas nas mais variadas formas pedagógicas, de artes e de registros no âmbito da comunicação. Portanto, o propósito deste livro é justificado por uma necessidade interdisciplinar de criar um diálogo com diferentes campos de pesquisa, trazendo pesquisadores experientes, mas também aqueles que estão no início da carreira ou ainda em processo de formação, construindo um espaço democrático de discussão composto por várias gerações.
Pretende-se pensar de maneira ampliada o sentido das viagens e as obras de arte que as investigam e exploram por linguagens diversas, porém sob a perspectiva estética. As viagens não são apenas acontecimentos e fatos objetivos, mas proporcionam experiências na ordem do sensível. As viagens deixam de ser uma ação isolada de deslocamento e têm o foco lançado no plano estético, seja manifestação do belo, do impactante, do aterrorizante ou do arrebatador, dando forma à dimensão vivencial das jornadas. Dessa maneira, ao priorizarmos tal campo de reflexão, os textos desta coletânea espelham os pontos de vista analisados pelos participantes do colóquio e são confrontados com as mais diferentes perspectivas de análise. Convergem, entretanto, para a vontade comum de atribuir à viagem uma atenção necessária, pois esta é catalisadora de uma memória coletiva, conceito indispensável para a compreensão das interpretações subjetivas e dos fatos que se misturam no campo social. Assegura-se que seu imaginário seja apreendido, abrindo-se a múltiplas interpretações e suscitando, face a um conjunto de abordagens, a força da narrativa ao descrever, compreender e explicar o caráter pluridisciplinar da viagem.
O “IV Colóquio Internacional Estéticas no Centro: Estéticas das Viagens”, que teve como anfitrião o Ambiente 33 – Grupo de Pesquisa Interunidades da Faculdade de Comunicação e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade de Brasília, vinculado às linhas de pesquisa Estética, Hermenêutica e Semiótica (PPG-FAU/UnB) e Imagem, Estética e Cultura Contemporânea (PPG-COM/FAC/ UnB), expressa ainda sinceros agradecimentos à toda sua equipe: Arthur Gomes, Cícero Castro, Jorge Oliveira, Lúcio Pereira de Mello, Marina Sabioni, Pedro O. Braule, Rosemary F. Lopes, Pilar Sanches, Tatiana Castro, Tiago Mendes Filgueiras, Virgínia Manfrinato, Viviane Rocha e Yanet C. Arqüelles. Agradecemos também aos professores Carlos Henrique Magalhães (FAU/UnB), Eduardo Jesus (Fafich/UFMG) e Maurício Panella (Instituto Casadágua-RN), pela participação irretocável na comissão científica do evento; a Maria Eugênia Matricardi (SE/GDF), pela coordenação da exposição de artes; e ao suporte financeiro da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAP-DF).