Niterói/RJ
Cíntia Vieira da Silva (UFOP)
Fernanda Proença (UFOP)
Marcela Oliveira (UERJ)
Pedro Duarte (PUC-Rio)
Pedro Franceschini (UFBA)
Pedro Süssekind (UFF)
Rosa Gabriella Gonçalves (UFBA)
Vladimir Vieira (UFF)
Apresentação
Não seria exagero afirmar que a noção de “fronteira” é uma das mais fundamentais para a área de estudos que a tradição denominou de “estética”. Foi ao abrir um campo próprio de investigação que a abordagem da arte e do belo, embora já viesse de tempos muito mais antigos, constituiu-se efetivamente como disciplina filosófica autônoma. O nascimento da estética na modernidade coincide com a demarcação de seus limites em relação aos problemas morais e cognitivos circunscritos aos domínios do bem e do verdadeiro (enquanto seu debate contemporâneo tantas vezes aponta a dificuldade de traçar tais limites).
Pode-se observar um movimento análogo quando consideramos os objetos investigados por essa então nascente disciplina. A gestação da estética -, desde o século XVII até a publicação da Crítica da faculdade de julgar de Kant no fim do século XVIII – pode ser caracterizada a partir da tendência a fixar a fronteira entre as categorias do belo e do sublime, que encontramos na formulação canônica da obra de Kant. Não à toa, Edmund Burke já reconhecera como o principal obstáculo a ser superado pela sua Investigação o fato de que “as ideias do sublime e do belo eram frequentemente confundidas; e que ambas eram aplicadas de modo indiscriminado a coisas que diferem grandemente, e às vezes de naturezas diretamente opostas”.
A própria reflexão sobre o sublime envolvia uma discussão acerca de nossos limites humanos e da eventual possibilidade de superá-los. Segundo a leitura de Schiller, ele seria um “objeto frente a cuja representação nossa natureza sensível sente suas limitações, enquanto nossa natureza racional sente sua superioridade, sua liberdade de limitações”. Essa dimensão sublime da experiência estética possibilitou, inclusive, a emergência de uma filosofia do trágico na época moderna.
A discussão a respeito da diferenciação entre as formas de arte também recupera a linguagem da fronteira e dos limites, como testemunha o subtítulo do canônico ensaio de Lessing acerca do Laocoonte: “Sobre as fronteiras da pintura e da poesia”. Temática antiga, s que remonta à Poética de Aristóteles, o estabelecimento de fronteiras entre as diferentes artes – seja a partir de seus objetos, seus meios ou dos sentidos afetados – é decisivo na crítica de arte do século XVIII que participa da consolidação da estética e se prolonga nas tentativas de constituir um sistema das artes, tal como em Schelling ou Hegel.
O problema apresentado pela arte, já na Crítica da faculdade de julgar de Kant a, dava mostras de que as recém conquistadas fronteiras estariam destinadas a serem reabertas e reformuladas. O juízo de gosto, quando aplicado à maioria das artes, resistia a ser considerado puro, e suas conexões com os juízos éticos não tinham como ser rechaçadas. O percurso teórico que passava pela elaboração de obras belas, inicialmente concentrado na noção de gênio, criou ramificações cujas consequências os romantismos exploraram.
Uma destas ramificações frutificou já no século XX. Em sua leitura da noção de crítica de arte romântica de F. Schlegel e de Novalis, Walter Benjamin ressalta a continuação das obras no discurso que sobre elas se faz. “Para os românticos, a crítica é muito menos o julgamento de uma obra do que o método de seu acabamento. Neste sentido, eles fomentaram a crítica poética, superaram a diferença entre a crítica e a poesia”. A figura do crítico de arte historicamente surge ao lado dos teóricos da estética como ciência do belo, mas a este o pensamento romântico relido por Benjamin recusa o título de “juiz da arte “. Não se trata de julgar, mas de desdobrar. Isso produziu uma aproximação entre o que, tradicionalmente, suponha-se distante: reflexão e criação, conceito e metáfora ou mesmo filosofia e arte. Os artistas modernos foram, não raro, teóricos, com textos que comentam suas obras ou as integram. Desde Georg Lukács, interrogou-se também o caráter artístico da forma do ensaio, enfatizando a apresentação na linguagem das ideias teóricas. Poesia e prosa às vezes juntam-se na prosa poética. Foram apontadas as “formas literárias da filosofia”, chamando a atenção para a expressão em diálogos de Platão ou em confissões de Santo Agostinho. Se as fronteiras foram importantes para se marcar a singularidade de diferentes discursos, atravessá-las tornou-se também crucial para responder ao que Martin Heidegger chamou de “tarefa do pensamento” ao buscar o diálogo entre a filosofia e a poesia.
A figura de Charles Baudelaire, estudada por Benjamin, ele mesmo um mestre do ensaio, pode ser tomada como encruzilhada que embaralha outra fronteira envolvida nos estudos em estética e filosofia da arte: aquela entre vida e obra. Se o modo de viver de certos artistas do século XIX compõe uma estilística, com um tratamento estético dos gestos, atos e comportamentos, o século XX é palco de uma intensificação do tratamento artístico de movimentos vitais, sobretudo na performance. Ações típicas da vida cotidiana são transpostas para um cenário artístico, configurando-se como obras de arte, e o corpo dos artistas se torna suporte e material de sua produção, de maneira mais explícita do que aquela presente nas artes cênicas tradicionais, como a dança, o teatro e o canto.
Ainda no século XX, o esboroamento das fronteiras entre as artes e outros campos discursivos, tais como a psicanálise, a política e a ética, seria capaz de engendrar transformações no plano formal de composição das obras, para além de abrir novas questões a serem desdobradas no plano temático. Se a técnica do fluxo de consciência, por exemplo, teria revolucionado a literatura, na fronteira com a psicanálise, no século XXI vêm se acentuando no universo da arte as reflexões sobre tecnologia, crise ambiental, questões de gênero, descolonização.
Nesse contexto, o debate estético do século XXI defronta-se literalmente com a ideia de fronteira, ao criticar o eurocentrismo que o balizou tradicionalmente. Como as fronteiras nacionais ou culturais – que a modernidade já deixava transparecer, por exemplo, nas polêmicas do romantismo alemão com o classicismo francês – alteram o sentido da arte? No Brasil, desde o começo do século XX com o Modernismo e outras expressões críticas e artísticas, tem sido pensada a relação do país com o Ocidente: seja pela fronteira que o separa ou pelas passagens nela que produzem identificações. A mais famosa formulação para essa questão foi a antropofagia, de Oswald de Andrade, mas não a única: devorar e digerir o que é estrangeiro, ao invés de se isolar ou copiar. Tratava-se de pensar, também, a unidade e fronteiras dentro do Brasil, como nas viagens do “turista aprendiz” Mário de Andrade.
No Brasil, pensar a arte foi pensar (e atravessar) a fronteira entre arte erudita e arte popular, o moderno e o arcaico, a indústria cultural e a tradição, o litoral e o sertão, o país e o mundo, o dentro e o fora – muitas vezes colocando em jogo um projeto de país, ou uma “promessa de felicidade”, como já se disse sobre a Bossa Nova. E, quando a fronteira foi usada para garantir alguma pureza – seja de uma forma de arte, de uma extração cultural ou de um povo -, boa parte da arte brasileira respondeu, com Hélio Oiticica, que toda pureza é um mito.
Procurando promover o debate em torno da noção de fronteira na estética, o Congresso Internacional propõe a abordagem de alguns desses aspectos, seja de maneira independente, seja mediante os diálogos possíveis entre eles.