A arte da vingança
Ano
2017
Formato
CD-ROM
ISBN
978-85-60537-04-4
Organização
Imaculada Kangussu
Adriano Menezes
Rafael Milward
Opções de leitura

Apresentação

A publicação ARTE DA VINGANÇA traz uma seleção de textos que foram apresentados no VII Colóquio Internacional Filosofia e Ficção. Realizado no Instituto de Filosofia, Artes e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto, em agosto de 2015, o objetivo do colóquio foi reunir pesquisadora/es, pós-graduanda/os e artistas que se ocupam em buscar e analisar as intersecções entre filosofia, psicanálise, literatura e outras formas de artes, para apresentarem reflexões sobre o tema proposto.

Sobre a escolha do tema, lembramos que Vingança, considerada como represália, retaliação, reparação, retribuição, é um desejo e uma ação presentes nas representações do espírito humano desde seus primórdios. Heróis vingativos e heroínas vingativas, tanto divino/as quanto mortais, são figuras constantes no universo mitológico.

No imaginário clássico, com o crime inaugural de Kronos, que castra o pai, Urano, com uma  foice  fornecida  por  sua  mãe, Gaia,  para  libertá-la  do  desejo  insaciável  do  cônjuge  e possibilitar que ela dê a luz ao cosmos, vê-se instaurado um interminável ciclo de vinganças: das gotas do sangue de Urano brotam as Erínias, nas palavras de Vernant, “as divindades da vingança  pelos  crimes  cometidos  contra  consanguíneos. As  Erínias  representam  o ódio, a recordação, a  memória  do erro, a  exigência  de  que  o crime  seja  castigado”  (VERNANT,  O universo, os deuses, os homens. São Paulo: Cia das Letras, 2000; p.25).

“A mim pertencem a vingança e a recompensa”, são palavras do Deus Javé presentes na Bíblia e na Torah (Deuteronômio XXXII, 35). Ao longo de todo o Antigo Testamento, existe um Deus vingador – de maneira parcial, como no caso dos adoradores do bezerro de ouro; contra a totalidade, como aconteceu com os egípcios que, por perseguirem os filhos de Israel, foram todos afogados no Mar Vermelho, e com os habitantes de Sodoma, que pereceram todos. O Livro de Amós é uma descrição das terríveis ameaças de vingança de Javé contra os que se deixam levar pela cobiça sem escrúpulos.

Ainda que o cristianismo tenha condenado a vingança – cristãs e cristãos devem oferecer a outra face –, vingar-se é prerrogativa divina mesmo no Novo Testamento: “E Deus não vingaria seus eleitos que por Ele clamam noite e dia? Será que vai fazê-los esperar? Eu lhes declaro que Deus fará justiça para eles” (Evangelho segundo São Lucas, XVIII, 7-8).

A  apresentação de  um  deus intervencionista, fazendo justiça  brutalmente, conduz  à ideia de que na esfera do divino as injustiças não são esquecidas, ao contrário, são registradas e quando, pelo acúmulo, tornam-se insustentáveis, a “violência divina” explode em vinganças  destruidoras. Se, por  um  lado, um  filósofo do porte  de  Francis  Bacon  considera  a vingança como uma espécie de justiça bárbara (em “Da vingança”, nos Ensaios); por outro, a expressão “violência divina” é dessacralizada e convertida em conceito profano para realizar  a  justiça  como  “direito  natural”  – que  Walter  Benjamin  distingue  do  direito  jurídico, “positivo” (em “Sobre a crítica do poder como violência”). A  vingança aparece assim, como uma espécie de justiça, em textos de filósofos contemporâneos como, por exemplo, em  Eric Santner (On Psychotheology of Everyday Life. Chicago: University of Chicago Press, 2001), Terry  Eagleton (Sweet Violence: The Idea  of the  Tragic. Oxford:  Blackwell, 2002), Slavoj Zizek (“Divine Violence”, em Violence. New York: Picador, 2008).  Nesses contextos profanos, a chamada “violência divina” diz respeito a deus no sentido do motto latino “ Vox populi, vox dei”.

Na dimensão estética, da trágica Medeia, de Eurípides, à contemporânea Beloved, de Toni Morrison, a vingança é tema recorrente, sobretudo na literatura, permitindo à arte realizar impulsos proibidos, via sublimação e consequente catarse. Seja como necessária à justiça, ou como desejo irracional, a vingança e sua representação artística acompanham a história humana. Como se sabe, pulsões recalcadas, reprimidas, não satisfeitas, nem reorientadas ou sublimadas convertem-se em frustração, que facilmente se reconverte em violência. Não se pode impor a uma sociedade um sistema mais racional que os indivíduos que a compõem, é preciso um ajuste – uma espécie de equalização – entre as instituições e os desejos e expectativas dos indivíduos, sob a pena de haver uma rejeição do sistema e explosões de violência vingativas. A dimensão estética desempenha, cada vez mais, esse papel equalizador. Ao dar voz aos “danados da terra”, a própria obra de arte parece poder revelar-se como vingança. Reunimo-nos então para pensarmos sobre essa que já foi considerada a “grande arte”, pelo poeta Arquíloco, no século VII a.C.:

Tenho uma grande arte, Eu firo duramente Aqueles que me ferem. (Fragmento 126 W)

Com o desejo de contribuir para a reflexão e o aprofundamento filosófico de tema tão relacionado à arte e à cultura contemporâneas, é com prazer que tornamos pública uma parte expressiva do que foi apresentado no VII Colóquio Internacional Filosofia e Ficção A Arte da Vingança.

Agradecemos à numerosa adesão de colegas, à presença contagiante de estudantes, à generosa colaboração de funcionários e à ajuda financeira da Fapemig e da Capes, responsáveis pelo sucesso do evento. Neste momento sombrio da história de nosso país, vale lembrar, recorrendo à polissemia do verbo, que “vingar é a melhor vingança”.

Carla Milani Damião e Imaculada Kangussu, com ajuda de Ana Chiara e Ana Lúcia de Oliveira